TRABALHADORES ESSENCIAIS

SÃO PAULO BRASIL

TRABALHADORES ESSENCIAIS

Quantas histórias existem por trás de uma imagem? 

Essa pergunta fica ainda mais interessante quando estamos diante das 26 fotografias que compõem esta exposição, que reúne uma fração inusitada do trabalho de Ale Ruaro. Uma fração, porque Ale Ruaro é responsável por uma obra extensa e difusa, que já foi exibida em várias cidades, no Brasil e no exterior, e agora chega ao Memorial da República Presidente Itamar Franco. E um recorte inusitado, sem dúvida, uma vez que o fotógrafo gaúcho é conhecido por "Naked Friends", "São Paulo - SM" e tantos outros trabalhos, nos quais, como quem vasculha com os olhos os escombros da sexualidade, entrega fotografias que dão a impressão de que vão romper as fibras do papel. 

E é desse lugar que, atendendo a um chamado do futuro, Ale Ruaro pôs sua lente para trabalhar a serviço de seu tempo. O resultado é uma seleção que retrata alguns “trabalhadores essenciais”, como ficaram conhecidos os profissionais da saúde, caminhoneiros, jornalistas e demais brasileiros para quem a pandemia de COVID-19 não deu a opção de ficar em casa.

No entanto, há algo que se passa entre o que vemos e o que olhamos que não se encontra em histórias contadas, tampouco nos dados biográficos do sujeito por trás do ato que enforma o vazio a que a arte dá lugar. Tudo isso está aí, disponível à leitura. Mas a história ao redor da imagem não esgota suas consequências. Isso que resiste à plena ciência da representação é uma das formas de entender o que Roland Barthes chamou de punctum da fotografia, algo que tem relação menos com a forma (e a informação) do que com a intensidade e com a própria experiência do Tempo. De acordo com Barthes, o punctum costuma ser evidente tanto na fotografia histórica quanto nos álbuns de família - com suas imagens carregadas de um afeto sempre presente, que embaralham esperas e lembranças em mil e uma badaladas descontínuas. 

Aliás, Santo Agostinho chega a dizer que o tempo não tem outra dimensão além do presente, e que as experiências do passado e do futuro são meras desinências do instante: a espera (ou o presente do futuro, segundo o Bispo de Hipona) e a lembrança (o presente do passado). Essa equivalência nos introduz de "supetão no paradoxo do agora" [1], rasgando a linearidade sob a qual abrigamos nossa esperança de que o tempo não passará. 

Mas ele passa. E não há linguagem - sino, ponteiro, calendário ou apito de fábrica - capaz de deter o curso de seus efeitos. 

bloco: “Ao me dar o passado absoluto da pose, a fotografia me diz a morte no futuro"

E você, o que fez durante a pandemia de COVID-19, essa catástrofe já apontada por muitos como o evento decisivo de nossa época?  

Aqui pedimos licença ao visitante para que ele realmente pense em uma resposta. Afinal, a resposta a essa pergunta vai variar bastante conforme as desigualdades que dão o tom da história de nosso país, cujo presente anda tão em falta com suas lembranças e esperas. 

Quanto ao fotógrafo, ele foi ao trabalho. Entre os dias 20 de junho e 28 de julho de 2020, Ale Ruaro registrou essas imagens tão vigorosas e singulares - típicas de quem há mais de 20 anos se dedica a escrever com luz aquilo que só a fotografia é capaz de transmitir. Hoje, dia em que abrimos esta exposição, o futuro trouxe sua encomenda: mais de 107.000 vidas cujas mortes já estavam lá, naquilo que nos olha de volta quando vemos as fotografias dos 26 trabalhadores essenciais retratados por Ale Ruaro.

E agora? 



Tarcísio Greggio

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